terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio...


Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
    (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
    Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
    E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
    E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
    Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
    Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
    Pagã triste e com flores no regaço.





O poema pode dividir-se em três partes lógicas:
  • 1ª.: Desejo epicurista de fruir o momento presente (1ª. e 2ª. estrofes):
    Mais do que da emoção de contemplar a natureza, a atitude amorosa resulta da interpretação dela como símbolo de fugacidade, interpretação que a razão comanda, revestindo o amor de uma gélida frieza, pelo calculado e pensado sentido que retira toda a espontaneidade ao mais simples gesto de ternura;
  • 2ª.: Renúncia ao próprio gozo desse fugaz momento que é a vida (3ª. a 6ª. estrofes):
    É nítido o afrouxar do impulso amoroso, a tal ponto que, do gozo do momento presente, mais não fica que uma contida emoção que aos poucos se anula para terminar numa atitude de quase indiferença e de irremediável incomunicabilidade. E mais uma vez essa recusa é símbolo mais amplo de um desencantado viver, que nega qualquer paixão mais forte e todo o esforço impotente para alterar a força do destino .
  • 3ª.: Explicação dessa renúncia como única forma de anular o sofrimento causado pela antevisão da morte (7ª. e 8ª. estrofes):
    Esse ideal de ataraxia que Reis bebeu em Epicuro (e que não contém outro prazer além da ausência de dor) é o remédio ilusório para a obsessão da morte que, no final do poema, ele antevê e disfarça em eufemísticas perífrases clássicas, mas que soa ininterruptamente em Reis como um dobre a finados. E é exactamente para superar a morte, ou superar-lhe pelo menos o cortejo de sofrimento e a saudade que a acompanha, que ele opta por essa vivência atrás definida, que nada deixe que se lamente ou se deseje.
    O rio, que sugere passagem e morte. 
  •  O "barqueiro sombrio" é Caronte que, na mitologia grega, transportava as almas dos mortos que tinham sido incinerados ou enterrados através dos rios infernais (o Estige ou o Aqueronte), mediante um óbolo (pequena moeda grega), que a família do defunto Ihe colocava na boca para pagar a passagem.
  • O ritmo lento, pausado e plangente é sugerido pela pontuação, pelos advérbios de modo sossegadamente (duas vezes), silenciosamente, sem desassossegos grandes, tranquilamente e pelo uso de sons fechados e nasais.
  • Palavras negativas ou de conotações pessimistas: "A vida passa" (duas vezes) = nada deixa = nunca regressa = vai; passar = correr; passamos; "sempre correria" = "sempre iria ter à..."; não (cinco vezes); nada (três vezes); sem (três vezes); nunca (duas vezes); nem (seis vezes); "muito longe", "mais longe que os deuses"; sempre (duas vezes utilizada para traduzir a passagem inexorável do tempo); "Pagãos inocentes da decadência", "Pagã triste".
  • A enumeração: "Sem amores, nem ódios, nem paixões (...) Nem invejas (...) Nem cuidados". A comparação: "passamos como o rio".
  • O eufemismo (atenuação do grau de violência ou do carácter trágico duma palavra ou expressão) está presente na perífrase "levar o óbolo ao barqueiro sombrio" e ainda em "se for sombra antes" (= se eu morrer antes).

1 comentário:

  1. Eu acho esse poema lindo! Tem mais de 20 anos que eu o conheço, e mesmo assim, sempre que o recito, parece ser a primeira vez.

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