terça-feira, 1 de março de 2011

"Ode Triunfal" de Álvaro de Campos


 Imagem do filme "Tempos Modernos" de Charles Chaplin (1936)

 A "Ode Triunfal" é o poema que Álvaro de Campos elaborou supostamente em Londres, no ano de 1914, «num jacto e à máquina de escrever, sem interrupções nem emenda», de acordo com o próprio Fernando Pessoa na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos. A ode chegou ao público através do primeiro número da revista «Orpheu», em 1915.
          A composição, constituída por 240 versos, inclui-se na segunda fase poética de Álvaro de Campos, a fase do futurismo e do sensacionismo, entusiasmado  pela modernidade, a técnica, o progresso, a velocidade, no caminho de Marinetti e de Walt Whitman, de quem era discípulo confesso.


          O título é sugestivo do conteúdo e significado da ode. O nome «ode», de origem grega, remete para o cântico laudatório de uma pessoa, instituição, ou acontecimento. No caso deste poema, significará um canto de exaltação da civilização moderna industrial.
 O adjectivo «triunfal» hiperboliza o significado de "ode", conferindo ao texto uma sugestão de força e exagero. O título traduz uma sensação de triunfo e de monumentalidade visto que sugere algo de grandioso, quer a nível do conteúdo quer da forma, o que está em conformidade com o tema da composição poética: o canto de exaltação da modernidade, do progresso, da técnica e dos seus excessos. 
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.



 O sujeito poético é um engenheiro situado no interior de uma fábrica;
Actividade a que se dedica: escrita,  a partir da contemplação do que o rodeia ("Tenho febre e escrevo" - v. 2);
Estado de espírito: dor, violência e febre, causadas por sensações contraditórias: a beleza do que o rodeia deixa-o doente ;
Novo conceito de estética: novo conceito de beleza, "totalmente desconhecida dos antigos" (v. 4).
Álvaro de Campos apresenta a sua visão do elemento tempo. Ao contrário de Marinetti, que defendia o apagamento do passado e do presente em relação ao futuro que seria «tudo», Campos reduz o passado e o futuro a um só tempo: o instante presente (vv. 1-18; 19; 21-22).
Mas o presente só é possível porque está alicerçado no passado, na base do qual se apoia a construção do futuro; ou seja, passado e futuro ganham significação no presente, no Momento.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!


Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical --
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força --
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.


Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!


      O estado de espírito do sujeito poético está condicionado ou surge marcado pela vivência do que vê.
Assim, apresenta-se como o cantor apaixonado e exaltado da civilização moderna industrial, espantado de novidade, louco de emoção, num estado febril ("tenho febre", "em fúria fora e dentro de mim",  "os lábios secos",  "cabeça a arder").
 Todos estes sentimentos e emoções se devem à forma maravilhada e entusiástica como «observa» o esplendor do progresso e da modernidade, que ama desesperada e pervertidamente.
          Por outro lado, a ode traduz fielmente o seu espírito face ao mundo, marcado pelo desejo de sentir tudo de todas as maneiras, numa histeria de sensações que passa pela paixão pela vida moderna,
pela civilização industrial, pela tendência contínua de humanizar as máquinas: “Grandes trópicos humanos de ferro, fogo e forças”; “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas”; "Ah!, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina!".       
As realidades cantadas são diversas, referentes aos avanços da técnica (grandes lâmpadas eléctricas das fábricas, rodas, engrenagens, maquinismos, ruídos modernos, máquinas, motores, correias de transmissão, êmbolos, volantes). 
 A nível do estilo podem destacar-se as frases exclamativas e as repetições, as onomatopeias relativas aos ruídos das máquinas, as interjeições e o ritmo rápido e excessivo.

Neste excerto encontram-se marcas de  Modernismo   na fábrica, na alusão às lâmpadas eléctricas e ao automóvel.
Marcas de Sensacionismo (“sentir tudo de todas as maneiras”, "canto o presente, o passado e o futuro"); as sensações crescendo até ao delírio ("tenho febre", "rangendo os dentes") e o excesso de discurso com o uso de vocativos,  exclamações e interjeições.
As marcas  de Futurismo encontram-se, por exemplo, no discurso caótico, nas onomatopeias ousadas, nos desvios sintácticos.
A "Ode Triunfal” representa uma ruptura com a poesia portuguesa a nível  da forma: irregularidade estrófica, métrica e rítmica; uso excessivo da coordenação; inúmeras figuras de estilo (onomatopeias ousadas, apóstrofes e enumerações exageradas), discurso caótico.
Mas a ruptura também existe, ousadamente, a nível do conteúdo: o uso de palavras prosaicas (comuns ou vulgares) e o canto excessivo da civilização industrial.

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