Há poemas de Pessoa em que a infância é recordada como tempo feliz ("Quando era criança" por exemplo) e outros em que é lembrada pelo oposto.
O poema em análise colhe, por assim dizer, destes dois mundos. Nele Pessoa recorda a infância tanto pelo que teve de feliz como de infeliz.
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
A memória visual de Pessoa é activada pelo movimento das criança, sobretudo pelos sons. A memória humana guarda eventos muitas vezes relacionando-os com os sentidos (cheirar algo pode activar a nossa memória, assim como ver algo, ou sentir algo com as mãos).
Neste caso é o som que activa a memória de Pessoa. Mas vemos que a actividade das crianças desperta em Pessoa uma alegria e não propriamente uma memória imediata.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
A razão porque é actividade uma "alegria" e não uma "memória imediata" tem a ver com aquela ambivalência de que falávamos: a infância de Pessoa foi feliz e infeliz, e ele não pode lembrar-se dela sem esquecer estes dois lados da mesma. No caso da 2.ª estrofe, Pessoa tira uma alegria de uma infância que não teve, precisamente porque a sua própria infância não foi completamente feliz. Não o foi completamente, mas também não o foi totalmente infeliz.
É esta réstia de felicidade, da vida até aos 6 anos, que de certo modo torna Pessoa são, que lhe permite lembrar um pouco da felicidade infantil. É a partir deste pouco que Pessoa extrapola o resto - este pouco serve-lhe para imaginar uma "infância totalmente feliz". É esta "memória projectada" que é dele, quando olha para as crianças. Imagina assim como poderia ter tido uma infância totalmente feliz e faz desta projecção a sua realidade momentânea.
Por isso diz que a memória "não foi de ninguém". É uma memória construída, projectada a partir de uma outra memória parcial.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Esta pequena felicidade é o que suporta Pessoa nos momentos mais difíceis. Como ele, nós também em momentos recordamos a nossa infância, principalmente quando na nossa vida adulta nos encontramos em dificuldades - a infância, sobretudo a infância, é um porto seguro para as inseguranças dos adultos. É na infância que se definem os mais básicos dos princípios,e valores da nossa personalidade e das nossas crenças.
Se bem que possa parecer que aqui Pessoa cede à emoção, não é realmente o caso. Veja-se como Pessoa racionaliza o facto da emoção o confortar - ele não se limita a reconhecer que a emoção o conforta, mas associa a esse conforto pobre a realidade de ser um "enigma" e uma "visão".
Para Pessoa, a constatação de um facto não se reduz apenas a isso: tem a necessidade permanente de racionalizar, de manter o controlo da sua mente e do que o rodeia. Esta necessidade de controlo absoluto - que se revela em todas as mentes racionais - é sinal óbvio dessa mesma infância perdida. É o pequeno rapaz que sentiu todo o seu mundo perder-se subitamente que tenta, enquanto adulto, racionalizar tudo à sua volta, de maneira progressivamente mais desesperada.