sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Viva a Escola Pública!



É uma escola em tudo semelhante à nossa, até na construção! Alunos simpáticos, inventivos, artistas, alegres, cheios de animação...Professores que são também uma referência para os seus colegas deste País!
Vejam o vídeo da Escola Secundária de Olhão, no Algarve, porque vale a pena. Os bons exemplos são para seguir!

Lip Dub da Escola Secundária Dr. Francisco Fernandes

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Alberto Caeiro

Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, em 1889 e morreu em 1915, mas viveu quase toda a sua vida no campo, com uma tia-avó idosa, porque tinha ficado órfão de pais cedo. Era louro, de olhos azuis. Como educação, apenas tinha tirado a instrução primária e não tinha profissão.

Como surgiu este heterónimo? 
Conta o próprio Fernando Pessoa que se lembrou um dia...

de fazer uma partida a Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive.”
 
Quando Fernando Pessoa escreve em nome de Caeiro, diz que o faz “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever.”

 

Fonte: Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935, in Correspondência 1923-1935, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.

Os Heterónimos

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de me encantar.
“Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival de Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
“Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.”

in Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, de 13 de Janeiro de 1935



terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O menino de sua Mãe

 
Este poema em seis estrofes de cinco versos (quintilhas), de versos regulares de 6 sílabas e rimados -esquema abaab- que se repete nas diferentes quintilhas, ainda que com rimas diferentes - destoa um pouco no conjunto do Cancioneiro por, aparentemente, abordar um tema social - o da guerra e dos jovens injustamente roubados à idade ("Agora que idade tem?"), às mães e às velhas amas, à infância, afinal. 
Trata-se, efectivamente, de um poema de base narrativa, com narrador - o poeta; narração de uma história; acção - a morte na guerra; personagens; espaço - plaino abandonado/lá longe, em casa; e tempo - passado. 
O narrador é subjectivo, visto emitir juízos de valor sobre o que conta e até sobre os motivos desta morte prematura. Em todo o caso, naturalmente que aqui, sob forma narrativa, se transmitem sentimentos (mesmo que "fingidos" no sentido de fingimento pessoano), emoções, ideias - logo, expressão do Eu, lirismo.
Nas duas primeiras quintilhas conta-se, descreve-se a situação vivida pelo protagonista e também se faz o retrato da personagem no momento actual. A descrição é feita em termos realistas,  como convém a quem quer fazer ver.
Nas estrofes seguintes, predomina a emoção, o discurso judicativo ou valorativo. O jovem, cuja juventude e perda dela são referidas em frases exclamativas, que já não tem idade (como se refere entre parênteses - discurso parentético que realça a mensagem nele contida) é, afinal, "filho único", cujo nome é, por vontade materna, O menino da sua mãe - é um menino-símbolo de uma mãe-símbolo: ambos personagens colectivas. 
Regressa-se nas 4ª e 5ª quintilhas à descrição e à emoção: a cigarreira breve, símbolo do que não morre, do que fica de uma vida, essa sim, breve (hipálage); o lenço bordado dado pela criada velha/que o trouxe ao colo.
A última quintilha lança um olhar sobre o espaço familiar: "Lá longe, em casa, há a prece:/"Que volte cedo e bem!" Só que a prece é, sem que lá em casa o saibam, inútil, agora que "o menino da sua mãe" 'jaz morto e apodrece" (este verbo substitui e intensifica o realismo do arrefece da 1ª estrofe). 
Pelo meio, novo discurso parentético que aponta subtilmente a causa que está por detrás desta morte prematura (Malhas que o Império tece!), ou seja, hoje e sempre, as vítimas que o desejo de Impérios faz.



Quando as crianças brincam


 Há poemas de Pessoa em que a infância é recordada como tempo feliz  ("Quando era criança" por exemplo) e outros em que é lembrada pelo oposto.
 O poema em análise colhe, por assim dizer, destes dois mundos. Nele Pessoa recorda a infância tanto pelo que teve de feliz como de infeliz.

Quando as crianças brincam 
E eu as oiço brincar, 
Qualquer coisa em minha alma 
Começa a se alegrar.

A memória visual de Pessoa é activada pelo movimento das criança, sobretudo pelos sons. A memória humana guarda eventos muitas vezes relacionando-os com os sentidos (cheirar algo pode activar a nossa memória, assim como ver algo, ou sentir algo com as mãos). 
Neste caso é o som que activa a memória de Pessoa. Mas vemos que a actividade das crianças desperta em Pessoa uma alegria e não propriamente uma memória imediata.

E toda aquela infância 
Que não tive me vem, 
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

A razão porque é actividade uma "alegria" e não uma "memória imediata" tem a ver com aquela ambivalência de que falávamos: a infância de Pessoa foi feliz e infeliz, e ele não pode lembrar-se dela sem esquecer estes dois lados da mesma. No caso da 2.ª estrofe, Pessoa tira uma alegria de uma infância que não teve, precisamente porque a sua própria infância não foi completamente feliz. Não o foi completamente, mas também não o foi totalmente infeliz. 
É esta réstia de felicidade, da vida até aos 6 anos, que de certo modo torna Pessoa são, que lhe permite lembrar um pouco da felicidade infantil. É a partir deste pouco que Pessoa extrapola o resto - este pouco serve-lhe para imaginar uma "infância totalmente feliz". É esta "memória projectada" que é dele, quando olha para as crianças. Imagina assim como poderia ter tido uma infância totalmente feliz e faz desta projecção a sua realidade momentânea.
Por isso diz que a memória "não foi de ninguém". É uma memória construída, projectada a partir de uma outra memória parcial. 

Se quem fui é enigma, 
E quem serei visão, 
Quem sou ao menos sinta 
Isto no coração.

Esta pequena felicidade é o que suporta Pessoa nos momentos mais difíceis. Como ele, nós também em momentos recordamos a nossa infância, principalmente quando na nossa vida adulta nos encontramos em dificuldades - a infância, sobretudo a infância, é um porto seguro para as inseguranças dos adultos. É na infância que se definem os mais básicos dos princípios,e valores da nossa personalidade e das nossas crenças.
Se bem que possa parecer que aqui Pessoa cede à emoção, não  é realmente o caso. Veja-se como Pessoa racionaliza o facto da emoção o confortar - ele não se limita a reconhecer que a emoção o conforta, mas associa a esse conforto pobre a realidade de ser um "enigma" e uma "visão". 
Para Pessoa, a constatação de um facto não se reduz apenas  a isso: tem a necessidade permanente de racionalizar, de manter o controlo da sua mente e do que o rodeia. Esta necessidade de controlo absoluto - que se revela em todas as mentes racionais - é sinal óbvio dessa mesma infância perdida. É o pequeno rapaz que sentiu todo o seu mundo perder-se subitamente que tenta, enquanto adulto, racionalizar tudo à sua volta, de maneira progressivamente mais desesperada.


Porque esqueci quem fui quando criança?


Trata-se de um poema algo inesperado do ponto de vista formal, visto que a maioria dos poemas ortónimos tendem a favorecer uma construção em quadras ou quintetos e aqui temos uma estrofe única com 9 versos e com um esquema rítmico também irregular. 
A temática do poema, no entanto, não é invulgar para a poesia ortónima Pessoana, visto que trata da infância, mais concretamente do confronto entre o passado (infância) e o presente (idade adulta). 
O sujeito poético diz-nos que o presente em nada continua o que foi a sua infância. As duas primeiras linhas falam disso mesmo, sendo que a segunda - usando um hipérbato, uma forma de inversão da ordem natural das palavras - reforça a dramatização do sentimento. A grande dúvida do poeta é a sensação de estranheza perante a sua infância (que ele sempre recordará como um tempo feliz, quase cristalizado). Essa memória de felicidade é-lhe tão estranha que ele duvida se ela realmente existiu, porque nada dela resta agora, quando ele é adulto: "A criança que fui vive ou morreu?", pergunta ele.
A dura realidade é que essa criança de facto já não existe. Em Pessoa - na poesia racionalizada de Pessoa - é importante realçar o facto da análise muitas das vezes sufocar o sentimento, embora não o destrua por completo. As sucessivas perguntas impedem que o verdadeiro sentimento do sujeito poético flua livremente, visto que ele apenas aparenta querer descobrir uma razão lógica para o que sente. 
A conclusão lógica é que ele é "um outro". 
É uma conclusão fria, que determina que nada resta dele enquanto criança (embora faça a pergunta,  parece saber a resposta). É um adulto que cresceu na inconsciência de estar a tornar-se num adulto - por virtude da sua infância ter sido cortada, de ele não sentir que teve uma pré-adolescência e adolescência felizes.


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Isto

 
 
 
O facto de Pessoa se ressentir de que digam que finge, tem a ver com o seu processo criativo e pelo facto de ter sempre sido considerado - mesmo em vida - como um poeta eminentemente racional. Diziam os seus contemporâneos que nada nele seria espontâneo, mas sempre pensado. "Defendendo-se", afirma que "sente com a imaginação", ou seja, usa a imaginação como barreira defensiva  da crueldade do mundo real.

Todo os passos da poesia de Pessoa são "terraços", são passos intermédios entre uma coisa e o seu significado. O poeta quer, acima de tudo , a verdade das coisas, mas para a alcançar, e sabendo como é difícil, desenha degraus, pouco a pouco, para a atingir. Deste modo se pode perceber um pouco a razão  do afastamento das coisas e, sobretudo, do fingimento.

Fingir é também possibilitar "sentir as coisas de todas as maneiras", como dizia o heterónimo Álvaro de Campos. Só se pode sentir tudo de todas as maneiras, se não se sentir nada de maneira nenhuma: se não estivermos presos pelo sentir das coisas, será talvez possível descobrir a verdade que escondem.
Para Pessoa, fingir não é uma fraqueza, mas antes um método de conhecer (e alcançar) a verdade das coisas, não se envolvendo demasiado nelas. Afastando-se Pessoa observa, e apenas afastado consegue ver mais claramente tudo o que o rodeia. Deixa o "sentir" para os outros, para "quem lê". 
"Essa coisa é que é linda" refere-se aos terraços, aos passos intermédios entre as fases do conhecimento. Não é a coisa presente que é a realidade, a verdade, mas um passo seguinte: e é essa descoberta, esse processo, que revela a beleza das coisas, na sua interminável complexidade.   
Se toda a Arte é a conversão duma sensação em objecto, toda a Arte é a conversão duma sensação numa outra sensação.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Autopsicografia


Numa primeira análise, devemos abordar este poema sobretudo pelo seu título: psicografia é um termo que pertence ao vocabulário do espiritismo e sabemos  do interesse de Fernando Pessoa pelo mundo esotérico. Psicografia é a capacidade dos mediuns escreverem mensagens ditadas pelos espíritos: a "escrita automática". Autopsicografia torna-se assim num título algo redundante, que pode ser traduzido como "escrita automática da própria alma". De certa maneira, é Pessoa aqui o espírito que transmite a mensagem ao Fernando Pessoa que escreve.
Pessoa quer descobrir para si mesmo o mistério da sua poesia e, sobretudo, da arte de ser poeta. Quem é o poeta, e por que será que o poeta escreve? A resposta, enrolada num mistério, apenas poderá ser desvendada através de um método igualmente misterioso. Este poema desvenda de certo modo a "teoria poética" Pessoana, definindo o poeta como um "fingidor", mas fala apenas de si mesmo. Novamente reforçamos a importância da análise do título: é Pessoa a falar de si a si mesmo. Um poeta pode não ser um fingidor, mas ele, enquanto poeta, é revelado enquanto um fingidor. Porquê? Pessoa não vai responder: afinal este poema é automático, não responde, apenas "descreve caoticamente". É nessa descrição caótica que cabe ao leitor desvendar o mistério. Uma ponta dessa revelação é que o fingimento serve para mascarar a dor. A dor que Pessoa sente é real. Mas através da poesia, a dor é sublimada ao ponto de se ebulir. A dor que ele sente, finge-a, ao ponto de a dor real parecer fingida. Mas ela é real? No início, sim, mas depois do filtro da poesia, já nada é real, mas sim emocionado ou raciocionado.
Pessoa recusa a escrita sob a emoção do momento: a poesia é feita depois da racionalização dos sentimentos, através da recordação do que se sentiu.
Quem lê sente apenas a ausência da dor em si mesmo e não a dor presente no poeta. O poeta tem as "duas dores", a real e a fingida, mas quem lê não tem nenhuma das duas - apenas a ausência de dor. 
A sublimação da dor em poesia não pode ser sentida por quem lê. Isto é compreensível, visto que é quem escreve que sente intimamente a dor que o leva a escrever.
É essa ausência a única a ser verdadeiramente sentida por quem lê. Quanto muito, quem lê tenta ver a origem da dor de quem escreve - mas à distância. Esta perda de sentido da dor - que ilude quem a sente, sobretudo se é um poeta, leva Pessoa a chamar pelo seu coração. O coração aqui é claramente equiparado tanto à dor como à emoção: é o coração que sente, é o coração que "entretém a razão".  Sentir? Fica entregue ao leitor... 


"Ela canta, pobre ceifeira"






Pensar-se-ia que um tema bucólico, como uma cena de ceifeiras trabalhando no campo, não atrairia a atenção de Fernando Pessoa, que é, eminentemente, um poeta racional e pouco dado à observação plena da natureza. A verdade é que, apesar do tema ser bucólico, a sua análise não o é. Vemos que há o ponto de partida da figura humana - da ceifeira - e a paisagem natural, mas o que de facto interessa ao poeta é algo na ceifeira, enquanto ser humano enquadrado na paisagem natural: o seu sentimento de alegria: "Ela canta (...) Julgando-se feliz talvez", diz o poeta. E é isso que o perturba, é isso que o faz pensar. É o canto feliz e despreocupado da ceifeira, naturalmente pobre e cansada, que faz Pessoa interrogar-se. Ela canta como se tivesse mais razões para cantar do que a vida, diz ele: "Canta sem razão!". Porque para o poeta a vida é feita, principalmente, de desilusão. Logo, como pode alguém como a ceifeira, ignorante, pobre, trabalhadora do campo, ser tão feliz? Tudo na poesia mais profunda de Pessoa é feito desta contraposição entre o "eu que observa" e o "outro que é observado". O poema da ceifeira que canta é um poema triste por todas estas razões. Porque é a maneira de Pessoa indicar a sua infelicidade, contrapondo a felicidade simples da ceifeira e também, num segundo nível, de nos dizer como para ele é difícil viver, sentir-se enquadrado, sendo que isso é demasiado simples para a ceifeira, que "é" simplesmente porque desempenha a sua função. Qual é a função de Pessoa? Onde estão a sua felicidade, a sua canção?A imagem da ceifeira feliz (embora pobre) faz Pessoa pensar. Porquê? Porque ela "canta sem razão". Para Pessoa deve haver uma razão para a felicidade - é a sua racionalização da realidade que, por vezes, o impede de a viver realmente. Mas mesmo assim, a sua intelectualização é fingida - "O que em mim sente está pensando", diz ele. É o mesmo que dizer que nega a sua emoção usando a razão: intelectualizando as suas emoções, consegue lidar com elas.
O "poder ser tu, sendo eu" é essa plena negação. É desejar ser o "outro" para não ter de olhar para dentro de si próprio. Ao contrapor o "eu" ao "outro" pode continuar a lamentar-se da sua sorte, pode dar pleno uso a essa vitimização contínua, que cada vez mais o fará mergulhar na solidão e no desespero. Além da contraposição, há também o desejo do impossível, sobretudo no que tem a ver com a síntese dos opostos ("Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência disso!").
 O poema termina com um sinal de desistência, de querer desvanecer-se, mas na realidade isso não nos convence. É a maneira correcta de acabar o poema, mas na realidade toda a essência do mesmo nada tem a ver com este terminus abrupto, que ordena aos campos e à canção que entrem por ele dentro e o transformem numa sombra leve que possa ser levada pelas ondas do refrão da ceifeira.
Há a reter o facto simples e concreto deste poema ser sobre a infelicidade, sobre a tristeza que é não se conseguir viver uma vida normal, de não se conseguir ser feliz. Se necessitássemos  realmente de imagens, poderia bastar a imagem do poeta a passar e a olhar com um olhar triste para a ceifeira feliz.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

"Não sei quantas almas tenho"






  É claramente um poema de reflexão por parte de Fernando Pessoa, e não tanto um poema de análise psicológica da sua mente. Dizemos isto recordando certas passagens do poeta em que este recorda ler o que escreveu com grande estranheza - é como se a sua obra lhe fosse estranha, quando ele percorre as páginas do seu passado.

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.

Esta primeira estrofe mostra aspectos da famosa
despersonalização de Fernando Pessoa. Diz não saber quantas almas tem, porque mudou a cada momento. Esta instabilidade é, no entanto, uma instabilidade de vida e não tanto uma instabilidade de "almas". Certo é que Pessoa, por sempre se expressar por vozes heterónimas neste momento já não se reconhece - tudo lhe foi sempre estranho, porque colocou sempre noutras vozes os seus problemas. Esta exteriorização das coisas na sua vida torna-o estranho à própria vida - parece-lhe que foi outro que a viveu.

Com a expressão "
De tanto ser, só tenho alma", Pessoa quer dizer que não sente ter vida, mas só alma - ou seja, a sua vida foi (e é) toda pensada, toda racionalizada. Como sempre passou para o pensamento tudo o que lhe acontecia, tudo o que sente é na alma, e parece que nada sente no corpo. Esta divisão corpo/alma é essencial no todo da obra de Pessoa e reflecte uma das características da mesma - a extrema racionalização, o reduzir de todos os impulsos a uma inteligência recusando as emoções puras.

Mas Pessoa sabe que tudo ser inteligência tem desvantagens: "
Quem tem alma não tem calma", diz ele. Quer dizer que quem pensa não tem Paz -  é inconciliável pensar e viver, ou se vive sem pensar ou se pensa sem viver. Viver a vida ou pensar a vida é um oposto que sempre desafia Pessoa.

"
Quem vê é só o que vê, / Quem sente não é quem é," marca ainda mais esta oposição viver/pensar. "Quem vê" é aquele que vive só a vida e não a pensa (sente). "Quem sente não é quem é" - quer dizer que o pensamento impede a acção na vida. Reforça que viver e pensar se tornam inconciliáveis.

Atento ao que eu sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Pessoa sentindo essa oposição pensar/viver transforma-se no papel, nas personagens dos seus heterónimos. E os heterónimos nascem das necessidades da sua vida - são filtros para o que vai acontecendo. À medida que são apresentados desafios a Pessoa, ele enfrenta-os indirectamente pelos seus filtros literários, pelas suas personagens literárias. Por isso ele diz que os sonhos e desejos é "
do que nasce" e não dele. Como que assiste à passagem da sua vida, porque se recusa vivê-la simplesmente. Tudo é analisado, dissecado, e tudo por isso se torna falso, uma ilusão de realidade simbolizada.

Pessoa é "
diverso, móbil e só". Ou seja, multiplica-se, viaja, e está no final sozinho, sem salvação. Esta instabilidade, redução do um a muitos, acaba por significar que ele deixa de sentir - "Não sei sentir-me onde estou". A vida é-lhe estranha e como a vida os sentimentos. Deixar de sentir é também deixar de viver - é alienar-se de tudo, proteger-se da vida, dos perigos, de tudo, para se recolher dentro de si, e por detrás dos seus personagens literários.
 
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu"?
Deus sabe, porque o escreveu.

"
Alheio" ele lê então "como páginas" o seu "ser".  A sua vida confunde-se com a sua obra - tanto que Pessoa diz ler como páginas o seu ser. A vida foi racionalizada, foi reduzida a linguagem escrita, transferida para os seus personagens literários, que acabam por viver a sua vida por si, por deixá-lo a um canto, reduzido quase a nada enquanto individualidade.

Pessoa-ele-mesmo apenas prevê e esquece. É uma espécie de pivot, de centro físico de tudo o resto, mas quase sem actividade. Ele é apenas uma "nota à margem" do livro que foi a sua vida. Alheio ao seu Destino (Deus escreveu), já não distingue quem nele viveu as coisas.


Retiremos deste poema a grande solidão de Pessoa - já reduzido a apenas uma nota de margem na vida (e na sua obra). Pessoa era a pessoa real, passando o pleonasmo, mas aqui torna-se evidente que a pessoa real foi obliterada, desmultiplicada em muitos outros, até que quase nada restasse do original. Nada para pensar, e sobretudo nada que sentisse o mundo à sua volta. Pessoa-ele-mesmo morreu para o mundo e já nada sente, e sobretudo o que sente é que a vida já não pode ser vivida senão por intermédio de um outro seu. A esperança de viver como
ele mesmo estava definitivamente perdida.

"O dos Castelos"



– O poema está construído com base numa personificação da Europa, como se se tratasse de um corpo humano.
– A descrição vai-se desenvolvendo do geral para o particular. O sujeito poético refere, logo no início do poema, o tema gerador da descrição – «A Europa» – e apresenta os dois traços definidores: «jaz, posta nos cotovelos» e «fitando». Constate-se que o cotovelo esquerdo se refere à Itália e o direito à Inglaterra (ou sobre elas assentes) países que se sabe serem a base das raízes culturais europeias.
Estes dois traços, jazer e fitar, serão desenvolvidos nas segunda, terceira e quarta estrofes.
– De referir a importância simbólica do olhar e do rosto: enquanto o primeiro tem, por vezes, um poder mágico e misterioso, o segundo encontra-se relacionado com um tipo de linguagem silenciosa.
– O poema assenta em duas imagens contraditórias: uma imagem de lassidão, de dormência transmitida pelo verbo jazer e uma outra de expectância, de movimento, de captação e de compreensão traduzida pelo verbo fitar. Estas duas imagens simbolizam a conjugação do passado com o presente e com o futuro, denunciando a importância de Portugal na construção desse futuro: O Ocidente, futuro do passado.
O olhar é, de resto, o único elemento que parece ter ainda alguma força, perante uma Europa cansada (este cansaço é visível pela posição adoptada). O olhar encontra-se no rosto = Portugal.
– A importância de Portugal, rosto da Europa e, portanto, a face visível de tudo o que ela representa, é posta em relevo pelo final do poema. A organização descritiva inicial do poema, de maior fôlego, vai-se condensando para se apoiar, na parte final, no rosto e no olhar.
– Para Pessoa, Portugal é o ponto extremo ocidental da Europa, é o rosto da Europa que fita o mar ocidental, o seu destino e o seu futuro.
Qual, então, a missão de Portugal? No segundo verso, embora referida indirectamente, é a de ligar o Oriente ao Ocidente, não apenas física mas espiritualmente. Segundo Pessoa, no texto publicado na revista A Águia, trata-se da procura de uma Índia nova.
Neste poema é evidente a crença de Pessoa de que Portugal possui todas as condições (geográficas e experienciais) para partir à descoberta de uma nova Índia, que estará na base do chamado V Império. É o rosto da Europa, o seu cérebro, logo o único país capaz de tal empresa.


"O Mostrengo"




 A acção deste poema é passada numa viagem de nau, nomeadamente no Cabo das Tormentas, durante uma noite escura. Nessa viagem os tripulantes são confrontados com um Mostrengo que está no fim do mar e pretende atemorizar os portugueses para que não continuem a sua viagem. O monstro questiona a sua tripulação, ficando assim a saber que eram portugueses e vinham para conquistar os mares, não abdicando da sua missão.
O Mostrengo é caracterizado directamente por dois adjectivos: “imundo e grosso” e indirectamente pelas suas acções, pois realiza movimentos circulares intimidadores e sitiantes. Também sabemos que vive em cavernas que ninguém conhece.
A palavra Mostrengo é composta por sufixação monstro + engo (radical + sufixo). O sufixo tem um valor pejorativo. Mostrengo significa uma pessoa muito feia, desajeitada.
Às interpelações do Mostrengo (1º e 2º estrofes), o homem do leme começa por responder assustado, apenas com uma frase que invoca a autoridade do rei intimidado pelo tom aterrador das palavras e pelo ambiente que o circunda. Porém na 3ª estrofe, consciencializando-se que não é apenas ele, “o homem do leme” quem ali está, assume-se como símbolo do povo e responde em 6 versos com convicção e força.
O Mostrengo simboliza os medos dos navegadores que enfrentam o desconhecido. O homem do leme é a figura do herói mítico, símbolo de um povo e que, portanto, passa de herói individual a colectivo, com uma missão a cumprir.
O número 3 é um número da perfeição, da unidade divina; a totalidade a que nada mais pode ser adicionado. Simboliza a Criação, a natureza tríplice de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo), o desenvolvimento ordenado e harmonioso do Universo, a síntese espiritual, os três ciclos de vida: nascimento, apogeu, morte, a composição do Homem (corpo, alma, espírito). Três são as estrofes do poema e três um número que paira sobre o poema como uma sombra de misticismo, como que dizendo que mesmo nas puras acções de coragem há a presença do divino ou, pelo menos, do conhecimento oculto. Isto significa que mesmo na mais simples das acções há destino, que nunca pode ser negado, quer no homem quer na Natureza. O pobre homem do leme ou o Mostrengo são armas de um poder maior do que eles mesmos.
Neste poema as frases declarativas estão ao serviço da narração e em parte do discurso do “homem do leme”; as frases interrogativas estão presentes no discurso do Mostrengo e a frase exclamativa consta também do discurso do “homem do leme”.