quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Autopsicografia


Numa primeira análise, devemos abordar este poema sobretudo pelo seu título: psicografia é um termo que pertence ao vocabulário do espiritismo e sabemos  do interesse de Fernando Pessoa pelo mundo esotérico. Psicografia é a capacidade dos mediuns escreverem mensagens ditadas pelos espíritos: a "escrita automática". Autopsicografia torna-se assim num título algo redundante, que pode ser traduzido como "escrita automática da própria alma". De certa maneira, é Pessoa aqui o espírito que transmite a mensagem ao Fernando Pessoa que escreve.
Pessoa quer descobrir para si mesmo o mistério da sua poesia e, sobretudo, da arte de ser poeta. Quem é o poeta, e por que será que o poeta escreve? A resposta, enrolada num mistério, apenas poderá ser desvendada através de um método igualmente misterioso. Este poema desvenda de certo modo a "teoria poética" Pessoana, definindo o poeta como um "fingidor", mas fala apenas de si mesmo. Novamente reforçamos a importância da análise do título: é Pessoa a falar de si a si mesmo. Um poeta pode não ser um fingidor, mas ele, enquanto poeta, é revelado enquanto um fingidor. Porquê? Pessoa não vai responder: afinal este poema é automático, não responde, apenas "descreve caoticamente". É nessa descrição caótica que cabe ao leitor desvendar o mistério. Uma ponta dessa revelação é que o fingimento serve para mascarar a dor. A dor que Pessoa sente é real. Mas através da poesia, a dor é sublimada ao ponto de se ebulir. A dor que ele sente, finge-a, ao ponto de a dor real parecer fingida. Mas ela é real? No início, sim, mas depois do filtro da poesia, já nada é real, mas sim emocionado ou raciocionado.
Pessoa recusa a escrita sob a emoção do momento: a poesia é feita depois da racionalização dos sentimentos, através da recordação do que se sentiu.
Quem lê sente apenas a ausência da dor em si mesmo e não a dor presente no poeta. O poeta tem as "duas dores", a real e a fingida, mas quem lê não tem nenhuma das duas - apenas a ausência de dor. 
A sublimação da dor em poesia não pode ser sentida por quem lê. Isto é compreensível, visto que é quem escreve que sente intimamente a dor que o leva a escrever.
É essa ausência a única a ser verdadeiramente sentida por quem lê. Quanto muito, quem lê tenta ver a origem da dor de quem escreve - mas à distância. Esta perda de sentido da dor - que ilude quem a sente, sobretudo se é um poeta, leva Pessoa a chamar pelo seu coração. O coração aqui é claramente equiparado tanto à dor como à emoção: é o coração que sente, é o coração que "entretém a razão".  Sentir? Fica entregue ao leitor... 


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